Ainda sobre a Web Summit 2019: cinco reflexões e um par de dúvidas

João Pacheco de Castro, Partner & Managing Director do Eurogroup Consulting Portugal, partilha a sua experiência sem sete notas essenciais.

 

O facto de a Web Summit ter chegado ao fim não significa que ela termine, não só pelos negócios que dela decorrem, mas também pelas ideias e experiências que nela persistem. Nesta ótica em particular, partilho a minha experiência enquanto participante nesta edição de 2019, sobretudo virada para a comunidade de developers e investidores, mas também onde temas como a política, a sustentabilidade e a privacidade prenderam a atenção de mais de 70 mil pessoas.

 

  1. O “social media” está morto. Viva ao “social media”!

Um dos indicadores de o social media estar a morrer é o facto de haver mais mensagens do que publicações. Quando temos 20 anos queremos sair com muita gente, mas quando já estamos na casa dos 30 passamos a querer ficar mais em casa ou com amigos, com quem temos relações e trocamos mensagens nas nossas próprias “tribos”. O facto de haver hoje mais Whatsapp e Instagram do que Facebook indica que estamos a evoluir do social para o messaging. Faz parte da natureza humana gostar-se de ter conversas bidirecionais, onde cada pessoa encontra o target certo e intensifica essa troca de conversas bilaterais, em vez de optar por tentar chegar a toda a gente. No social media há que expressar a personalidade da marca em vez de se apostar num pitch – e no B2B isso pode ser feito preferencialmente através de content marketing e executive branding autêntico, com forte sentido de inclusão e engagement, com histórias que toquem nas pessoas e criem micro impacto (e não macro impacto).

 

  1. O propósito da marca: Onde tudo deve começar

Ter um propósito claro e impactante, e executá-lo com responsabilidade corporativa, é um imperativo cada vez mais presente na agenda estratégica das organizações. Elas devem trabalhar muito o seu impacto positivo e saber como maximizá-lo, identificando a sua razão de ser, o porquê e o para quê – o seu propósito. Mas também têm de encontrar o equilíbrio deste face à sustentabilidade e à responsabilidade corporativa. Só assim conseguem exprimir uma preocupação cada vez mais legítima em criarem uma narrativa e serem genuínas naquilo que fazem. Nas startups há que responder a esta questão o mais cedo possível, por muito digital que seja o modelo de negócio. Já nas empresas estabelecidas, isto deve ser feito com atitude de descoberta e aprendizagem e não de “comando&controlo”, envolvendo todas as pessoas e identificando paixões, pontos fortes e propósito pessoal. Ao construir-se o propósito comum a partir da base, com pouco filtro das chefias, consegue-se desbloquear todo o potencial das pessoas e tirar partido da energia e do capital humano. Como em tudo na vida, há que maximizar o impacto positivo da organização (propósito) e minimizar o impacto negativo que qualquer atividade humana sempre tem (sustentabilidade e responsabilidade corporativa).

 

  1. Sustentabilidade, uma alavanca de valor e diferenciação

E a este propósito, a sustentabilidade veio mesmo para ficar. Vemos cada vez mais produtos, serviços e ativos baseados em carbono a perderem valor, e investimentos “verdes” cada vez mais competitivos – como é o caso da energia solar, que já está mais barata que a fóssil mesmo sem subsídios. Uma imagem interessante partilhada foi a de uma autoestrada onde seguimos já todos na mesma direção ainda que a velocidades diferentes, mas de repente há alguém que trava a fundo e encosta na berma incrédulo, podendo criar alguma perturbação – mas não será mais do que acidente de percurso (qualquer comparação com os recentes desenvolvimentos acerca do Acordo de Paris é pura coincidência). Mais tarde ou (preferencialmente) mais cedo, é preciso voltar à estrada e seguir viagem. Temos recursos que são de facto cada vez mais escassos. A água é um excelente exemplo, fazendo-se sentir cada vez mais vozes e havendo já empresas que procuram ser cada vez mais water neutral nas suas comunidades, minimizando o consumo. Devemos nesta altura pensar como é que cada um de nós pode estabelecer um plano para, por exemplo, cortar em metade o consumo de CO2 nos próximos 10 anos, e trabalhar nomeadamente três grandes frentes: energia, água e desperdício de alimentos. A sustentabilidade é mesmo uma alavanca de diferenciação que tem de estar presente na agenda das organizações de forma clara e concreta. Já não é só conversa de marketing ou filantropia: é mesmo business e com retorno!

 

  1. Mobilidade assente em cidade, consumidores e empresas

É preciso ter em consideração que enquanto estes três grandes stakeholders da mobilidade não estiverem alinhados, os problemas dificilmente se resolverão. Por um lado, temos as empresas a quererem vender, tendo como objetivo maximizar o lucro; já os consumidores exigem rapidez, mas também o low-cost e o ecológico; por fim, temos as cidades a pedir por segurança. O facto de assistirmos a um crescente número de carros devido à Uber e outras plataformas torna premente criar-se uma micromobilidade dentro das cidades. Alternativas como os comboios são muito dispendiosas, e os carros elétricos enfrentam o desafio congénito de terem pouca autonomia. O outsourcing com o intuito de garantir ao condutor ter os postos de abastecimento quando e onde necessita pode ser uma resposta.

 

  1. 2050: Odisseia ubíqua

A computação ubíqua não só é certa, como está cada vez mais perto – gostemos dela ou não. Dois exemplos talvez extremos, mas elucidativos: no futuro, cada vez que um de nós usar o WC o nosso médico poderá receber imediatamente um alerta caso algum elemento esteja fora dos limites – isto para bem da sua saúde, mas com alguns riscos de privacidade; na edição de 2050 da Web Summit, os participantes já poderão ter dispositivos que lhes permitirão, com uma simples troca de olhares, ver o nome, perfil e interesses pessoais e profissionais de cada um dos milhares de participantes com que se cruzam e identificar assim com quem vale a pena iniciar uma conversa. Sem dúvida muito prático, mas talvez um pouco… intrusivo? O certo é que estamos a caminhar a passos largos para um novo patamar do poder da computação, da automação e da informação, e da sua presença no nosso dia a dia, com enorme potencial, mas também com riscos acrescidos.

 

  1. “Is Big Brother (already) watching you”?

Até que ponto é que o Big Brother (leia-se: governos e grandes corporações) está mesmo já a monitorizar tudo o que fazemos? Claramente existem seguidores desta “teoria da conspiração”, tudo isto enquanto as gigantes do setor das TIC nos brindam com velocidades de acesso à Internet cada vez maiores, dispositivos cada vez mais inteligentes e tecnologia de partilha e utilização de dados cada vez mais anytime, anywhere. Tudo isto remete-nos para Edward Snowden, que aliás levanta uma questão muito interessante sobre o RGPD. De facto, na sua opinião o próprio nome indicia logo um problema à nascença porque mais do que de “proteção de dados” devia era falar-se de “regulamento de captura de dados” – o problema não está na proteção dos dados, até porque é algo que nunca se consegue garantir a 100%; está sim no seu acesso e captura. Mais uma vez um tema controverso, onde há sem dúvida imperativos de segurança cada vez mais complexos, mas também riscos crescentes de quebra de privacidade e utilização indevida dos dados. A tecnologia pode ser um enabler de soluções (para além de ser em si mesma também um fator de risco acrescido) mas o modelo global de governo é cada vez mais importante.

 

  1.  Até que ponto existe um “mau” da história?

E chegamos naturalmente ao fecho do evento, e inevitavelmente ao braço de ferro entre os EUA e a China, em que os primeiros colocam nos segundos a culpa por tudo aquilo que corre mal no mundo, e estes apelidam os primeiros de serem os “Ba” (tiranos) da história. No meio de tudo isto está a Europa – ou antes, a União Europeia, com todos os seus defeitos e dificuldades em tomar decisões e ações, mas que revela uma atitude aberta e séria de procurar compreender o cerne das questões e as soluções que podem funcionar melhor a prazo. A preocupação, conforme comentou na sua brilhante intervenção final a comissária europeia Margrethe Vestager, deve ser sempre obter resultados concretos, com um espírito aberto e positivo, envolvendo governos, empresas e cidadãos e sempre aceitando e sabendo conviver com o contraditório.

 

Artigo de opinião publicado no Jornal de Negócios